Quando escrever se torna difícil

Face a uma corrente forte, todo o mergulhador experiente sabe que, entrar num braço-de-ferro é a decisão menos inteligente que pode tomar.

O mergulhador pode até vencer esse minúsculo confronto, mas é quando as correntes favoráveis surgem que o verdadeiro campeão se revela. Nessas alturas, em que podíamos dar o nosso tudo por tudo, o cansaço impede-nos de continuar.


Ilse Reijs and Jan-Noud Hutten


É por isso que, remar contra a corrente, é uma decisão idiota. E essa foi a decisão que tomei, diariamente, durante mais de um ano da minha vida.

Eventualmente, como acontece com todos os idiotas, o cansaço acabou por vencer. E eu aprendi a minha lição. Uma lição que me custou engolir, como um bolo exageradamente seco numa tórrida tarde de verão.


A escrita e as complicações da vida


Depois de uns tempos a tentar engolir o tal bolo eu percebi (finalmente!), que as complicações eram apenas fruto da minha imaginação frustrada, que se viu desligada do seu meio de expressão favorito e que, para me castigar, decidiu fazer da minha vida um inferno.

Mas estou a antecipar-me. Deixem-me voltar ao início.

Tudo começou quando quis arrastar os hábitos da minha antiga vida para uma rotina radicalmente diferente. E a verdade é que a situação pareceu aguentar-se por uns tempos. Por uns tempos consegui fingir que estava tudo bem. Até que deixou de estar.

Quando dei por mim já não conseguia escrever. Algo me repugnava na minha escrita. Os poucos textos que ia produzindo acabavam sempre na reciclagem. Todas as minhas palavras me pareciam sempre falsas e vazias.

Esse ódio à minha falsa escrita levou-me a desistir. E já que não podia escrever, decidi dedicar-me a ser adulta e a autodestruir-me em jornadas olímpicas de trabalho.


O choque


No fim percebi que o trabalho se tinha tornado um vício. Um vício de quem tenta loucamente escapar a algo. E como todos os amadores, pensei que era tudo uma questão de tempo até conseguir ignorar aquele elefante gordo que me estragava os tapetes da sala.

Neste ano dediquei-me a provar a todos (e a minha mesma) que conseguia fazer o mesmo que eles, que valia tanto como eles, que podia ter um trabalho respeitável e ser boa nele. E por isso deixava-me ficar no trabalho até mais tarde. Só um pouco mais, até o cansaço me triturar por dentro e me fazer esquecer aquilo que me fazia tremer.

Passei umas longas semanas em choque. A tentar digerir essa informação. Percebi que por muito miserável que me sentisse o trabalho não era o culpado. O culpado era a tal coisa que me fazia fugir a sete pés.


O medo


Existe, em todos os escritores, um estranho medo de encarar uma página em branco. Um medo de que esse espaço vazio nunca seja preenchido. E, ao mesmo tempo, um medo que ele seja preenchido por frases e palavras inúteis e fracas, manchando um espaço que antes era perfeito, onde antes estavam em aberto todas as possibilidades.

E esse medo não foi diferente para mim.

O medo fez jogo sujo com a minha mente. Como eu penso que faz com todos nós. Pegou nas minhas inseguranças mais profundas e fê-las bailar à frente dos meus olhos em maratonas sem fim.

Nesta jornada percebi que os escritores têm que conviver com esse medo. O medo vai lá estar quando acordarmos, quando tomarmos o pequeno-almoço, escovarmos os dentes e nos sentarmos a escrever.

Não existe fórmula mágica para o esquecer. Ele vai estar sempre lá, às vezes camuflado de argumentos lógicos e persuasivos que nos farão questionar a sanidade dos nossos sonhos.

Dei razão ao meu medo durante longos meses. Mas a escrita não é um talento que eu se possa arrumar para um canto sem sentir as consequências. Porque quando escrevo sinto-me inteira, e isso vale mais do que todos os argumentos que me afastaram de uma folha em branco durante grande parte da minha vida.


Os erros


Quando comecei a levar a minha escrita a sério, foi quando comecei a cometer graves erros. Presumi que podia manipulá-la e moldá-la à minha vontade. Quis encaixá-la dentro dos padrões que não eram meus. Quis comercializá-la, domá-la. E o resultado foi uma escrita que nada tinha a ver comigo. Por isso tudo me parecia tão falso!

Foi um choque perceber que, eu, a pessoa que adora planear tudo, escrevo melhor quando não tenho absolutamente plano nenhum para me guiar. Foi estranho perceber que, muitas vezes, não tinha absolutamente nada para dizer até ao momento em que decidia sentar-me a escrever.

Talvez eu seja aquilo a que chamam de escritora intuitiva. E sabê-lo foi o primeiro passo para regressar. Pessoalmente, adoro a organização. E ter que conviver com uma escrita intuitiva caótica foi um pouco agressivo para o meu estômago sensível.

Por isso, antes de me render e antes de desistir de remar contra a corrente, tentei estruturar os meus pensamentos antes de estar completamente consciente daquilo que queria transmitir. O resultado foi uma escrita que passei a odiar.

No fim de toda esta desventura reconheço que foi bom experimentar ambos os lados. Agora percebo onde sou mais produtiva. Embora isso continue a assustar-me de caraças.


A mudança


Entretanto a minha vida mudou, tal como eu queria que mudasse. Embora, não no sentido que eu mais desejava. Por isso, muitas vezes sinto que estou apenas numa estação de serviço e que não posso parar por aqui.

Sinto que algures no meu caminho dei uma volta errada, virei para Este quando devia ter virado para Oeste. Fi-lo porque a Este estavam todos os meus amigos e família, todos os lugares familiares e as caras amigas. E a Oeste pairava uma grande nuvem e tudo me parecia demasiado estranho, escuro e diferente.

O resultado das minhas escolhas tenho-o sentido na pele, nos ossos, nas olheiras, nas insónias e tudo o resto que não me atrevo a partilhar aqui.

Seguir o caminho mais fácil (embora no meu íntimo eu soubesse que era o caminho errado) de repente mostrou ser muito mais difícil do que enveredar pelo caminho mais estranho (que eu acreditava ser o certo).

A falta de vontade que começou a marcar os meus dias obrigou-me a aprender algo com este caminho. E tudo o que estava para trás - todos os artigos, todas as entradas no meu diário, todas as tentativas de escrever ficção - me pareceu ultrapassado, falso e infantil.

Regressar ao blog neste ponto da minha vida obrigava-me a voltar ao passado e isso eu não conseguia fazer. Tinha-me tornado uma estrangeira no meu próprio domínio e todas as palavras no ecrã me pareciam ter sido escritas por uma estranha.


O regresso e o futuro


Contra todas as expectativas regressei.

E adorava de ter uma cara lavada para mostrar. Mas aprendi que as mudanças reais e duradouras quase nunca são visíveis a olho nu.

Secretamente, como todos os contos de criança me fizeram acreditar, pensei que ia deixar de ser o sapo e que me transformaria numa bela princesa. A realidade mostrou-me que a Princesa é que é a falsa desta história, eu nunca fui o sapo, o pato feio ou o porquinho da índia!

Eu fui sempre eu. Continuo a vestir um top simples e umas calças de ganga e os meus sapatos não são de cristal. E contudo, sou melhor do que essa Princesa que tinha imaginado. Sou mais real, mais profunda, mais autêntica. E não precisei de um novo look para sentir isso na pele.

A verdade é que passei quase toda a minha vida a tentar não ser eu. Inventava mundos diferentes, fantasiava com vidas paralelas, fazia de tudo para escapar da realidade. Porque, o mundo me fez detestar ser eu, pensava que era um ser humano incompleto, vazio, nada interessante... e foi nessa fuga que eu me encontrei.

Não encontrei a princesa dos contos de fadas que todos prometiam. Mas encontrei-me e, para meu próprio choque, percebi que nunca tinha sido aborrecida.

O que espero para o futuro deste blog é continuar a evoluir. Continuar a crescer e a descobrir-me e talvez, se tiver sorte, inspirar alguém a fazer o mesmo.

Não volto com um plano debaixo do braço. Volto apenas com a intenção de voltar a confiar na minha escrita, num processo que é só meu e de mais ninguém. E, daqui a uns tempos, quando deixar de sentir indigestão ao ler os meus textos, talvez possa dar o passo seguinte. E, com sorte, alguns de vós estarão lá para o testemunhar!

4 comentários:

MCampos | 16 de agosto de 2012 às 17:30

Boa!

Ana Reis | 20 de agosto de 2012 às 19:04

Obrigada!

Miguel lucas | 3 de setembro de 2012 às 13:53

Olá Ana, fiquei contente com o teu regresso à escrita. Vejo que voltaste a pegar na tocha do teu desenvolvimento e progresso.

Por vezes o mais importante é fazer, bem, menos bem, assim assim, mas fazer :)

Gostei de voltar a ler os teus textos.

Abraço

Ana Reis | 5 de setembro de 2012 às 12:54

Olá Miguel! Obrigada pelo comentário encorajador.
Passei muitos meses paralizada porque já não conseguia gostar da minha escrita. E a minha vida estava tão caótica que cheguei a pensar que era impossível encontrar algo de positivo e importante para escrever.
As férias deram-me outra perspectiva. E percebi que tinha que continuar a escrever, é como dizes, o importante é fazer. Escrever em doses massivas e publicar.
Cheguei a um ponto do crescimento em que deixou de ser confortável. E interpretei isso mal. Ao contrário do que pensava, quando custa é porque estamos no caminho certo. Na escrita ou na vida, não podemos esperar que seja tudo suave. E é quando custa mais que estamos mais próximos de uma mudança verdadeira e duradoura! É algo que vou tentar não esquecer nos próximos tempos.
Um abraço!

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